Nas últimas décadas, o processo de evolução da área de Gestão de Pessoas no Brasil e no mundo acarretou no surgimento das mais diversas práticas e termos. Para citar alguns exemplos, podemos falar do atual modelo de trabalho híbrido, da flexibilização de jornadas e de benefícios, do ESG (Environmental, Social and Corporative Governance – Ambiente, Social e Governança Corporativa), da transformação digital, entre outros vários conceitos que são pilares na construção do chamado RH estratégico, aquele que atua ao lado dos tomadores de decisão.
Todavia, na prática, ao acompanharmos cases, eventos e situações em geral que exponham o cenário de implementação de ações inovadoras nos Recursos Humanos, ainda é habitual que haja um apego ao privado, às práticas de startups a grandes corporações. E inevitavelmente, fica um questionamento no ar: será que a área pública acompanha tais inovações?
A gestão de pessoas no setor público
De acordo com o Guia Gestão de Pessoas no Setor Público, da Fundação Lemann, “como em qualquer organização privada, selecionar, reter, avaliar, desenvolver e engajar as pessoas deve ser prioridade para garantir os resultados pretendidos no setor público”. Segundo Weber Sutti, Diretor de Projetos na Fundação Lemann, a entidade, que atua com projetos de desenvolvimento social e educacionais – o que inclui um trabalho ativo ao lado de órgãos governamentais -, a gestão do funcionalismo público passa por um necessário período de mudança.
“Nosso trabalho mais voltado à gestão de pessoas nasceu de uma situação que precisava de novos contornos. As lideranças que chegavam ao setor público ficavam por pouco tempo, desistiam e havia muita resistência em retornar. Precisávamos entender o que estava acontecendo e se era uma tendência do Brasil ou global. O que identificamos, então, é que outros países têm um trabalho estratégico muito forte na Gestão de Pessoas, o que acarreta em serviços públicos de qualidade. E no Brasil ainda há um caminho para deixar de ser departamento pessoal e haver um RH público estratégico”, explica.
A “virada de chave” ainda esbarra em rotinas e processos ainda muito burocráticos. Diferentemente do setor privado, em que os cargos mais altos de RH começam a se integrar à diretoria das organizações, no setor público ainda existe um distanciamento. Sutti explica que a mudança de mentalidade se torna complexa por haver resistências corporativas e, sobretudo, políticas, uma vez que, segundo ele, o problema não está nos recursos.
“É gasto muito recurso no que é caro e não necessário. A questão que atrapalha o trabalho para desenvolver a Gestão de Pessoas no setor público não é financeira, mas sim relacionada ao poder. Porém, felizmente, hoje no setor público alguns governos começam a quebrar essas barreiras e já começaram a entender a importância de ações mais estratégicas no RH. E mais do que o entendimento, as práticas já acontecem. Levamos para eles que gerir pessoas não é ter uma folha ou um sistema de RH, mas ter processos claros de atração, desempenho, e de desenvolvimento.”
Estratégias
Weber esclarece que a Lemann não é, necessariamente, uma consultoria, mas sim uma organização que realiza um trabalho de entendimento sobre determinada situação e, a partir disso, dá suporte para suprir os gaps identificados no modelo de gestão.
Para o desenvolvimento do trabalho, é preciso traçar um objetivo comum, que é a criação de práticas de gestão estratégica. “Uma vez que há o objetivo comum, é desenvolvido um trabalho que leva em consideração a estrutura e as particularidades de cada uma das esferas públicas”.
O especialista pontua que, mesmo com o cenário político polarizado do país, todos os lados têm uma mesma meta: avançar. Para desenvolver um trabalho de desenvolvimento de lideranças, outro passo fundamental é criar ambientes seguros para debates e trocas de ideias entre pessoas com perfis políticos diferentes. A consolidação desse processo estimula uma tomada de decisões mais assertiva e que só contribui para que um trabalho com pessoas seja melhor aplicado.
“Há um objetivo a longo prazo que envolve consolidar o Brasil como uma referência na gestão estratégica de pessoas. Há muito conhecimento produzido e um trabalho que, aos poucos, começa a se consolidar.”
No país, ainda são poucas as políticas de atração e, quando há, elas variam conforme as mudanças de gestão. Para solucionar a equação que envolve a necessidade por líderes humanizados e líderes capazes de lidar com a burocracia do sistema, o Guia da Lemann pontua algumas estratégias:
- Adotar perfis de cargos claros e consistentes, com mapeamento das competências necessárias para cada posição e com desafios e objetivos bem definidos;
- Ampliar a divulgação de vagas abertas e dos processos de pré-seleção;
- Tornar as funções no setor público mais atrativas no mercado de trabalho, com levantamento das principais barreiras de atratividade e estrutura compatível com as responsabilidades de gestão;
- Procurar diálogo com órgãos de controle e o poder judiciário a fim de garantir maior segurança jurídica para um gestor que busque inovação e resultados.
Além disso, a publicação reforça a importância de investir em processos de pré-seleção (vale lembrar que há setores públicos que atuam também com celetistas e não exclusivamente com servidores públicos), especialmente para os chamados cargos comissionados – que não são preenchidos via concurso público. Para potencializar o reconhecimento de talentos e desenvolver ações de atração de retenção, a Lemann orienta:
- Implementar processos estruturados de pré-Seleção por competências para cargos de Liderança promovendo a alocação das pessoas mais aptas e bem preparadas em cargos críticos do setor público;
- Garantir estrutura interna para a realização dos processos e governança específica e com autonomia.
“Os cargos de liderança dentro do setor público costumam ser cargos comissionados. Ao invés de focar nos problemas da base pirâmide, se eu trabalhar o topo, há a possibilidade de um efeito cascata muito grande. O que você muda em cima vai impactar em toda a pirâmide”, diz Sutti.
O Diretor de Projetos acrescenta, ainda, que o trabalho efetivo de RH precisa de uma proximidade maior com os times de trabalho. Ao mesmo tempo em que há a busca pelo funcionalismo público por vantagens como a estabilidade e salários maiores, em média, que a área privada, há também preconceitos como a estereotipificação destes colaboradores. Muitas vezes é neles que cai a culpa de serviços públicos que, na verdade, sofrem com uma má estruturação e falta de investimentos.
“O que mobiliza um colaborador numa empresa é ele entender a função dele pra entrega da empresa e o salário. O que mobiliza um servidor público é ele entender que de fato o trabalho dele impacta a vida das pessoas. O potencial de engajamento de um servidor público é enorme. Você precisa desenvolver um bom trabalho com ele, treiná-lo, mostrar que ele tem apoio e suporte. As lideranças devem não só incentivar bons trabalhos, como também reconhecê-los e buscar formas de recompensá-los. As pesquisas da consultoria norte-americana McKensie recentemente demonstraram que o pagamento é o sétimo item dentro do que motivaria a pessoa a exercer o seu trabalho. Ter condições de trabalho, ter um ambiente favorável de trabalho é o que mais contribui na entrega”, salienta Sutti.
Os custos do funcionalismo público
De acordo com o Instituto Millenium, o funcionalismo público, em 2019, chegou a custar R$930 bilhões aos cofres brasileiros. A quantia equivale ao uso de 13,7% do PIB, enquanto o investimento em saúde não chegou a 4%.
O custo, avaliado como “alto demais para os padrões internacionais” pelo Banco Mundial, é facilmente justificável por dados apresentados por outros estudos. Segundo o “Atlas do Estado Brasileiro”, criado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), de 1986 a 2017, a média salarial de quem atua em função pública cresceu 23,5%. Já o relatório “Gestão de pessoas e folha de pagamentos no setor público brasileiro”, de 2019, revela que em comparação a um profissional da área privada, um servidor público recebe, no Brasil, remuneração até 96% superior.
Outro ponto importante do estudo de 2019, conduzido pelo Banco Mundial, é a informação de que o setor público oferece ajustes salariais muito superiores à inflação. No período de 2008 a 2018, servidores públicos estaduais e federais tiveram aumento salarial, em termos reais, de 1,8% e 2,8% ao ano. Em contrapartida, não são incomuns cenários de atraso de pagamento e baixa qualidade do serviço prestado. Até o início de 2019 sete estados brasileiros declararam estado de calamidade financeira.
Quando se discute sobre os altos valores, é necessário considerar que há diferenças significativas entre as quantias pagas nas escalas municipal, estadual e federal, sendo esta última a que abriga os salários mais elevados. Portanto, apesar dos números, não passa batido que ainda existe um cenário de desigualdade que, em partes, quebra o mito de que “todo servidor público ganha muito”.
Para efeito de comparação, um servidor público municipal ganha, em média, R$2,9 mil. O estadual, por sua vez, recebe R$5 mil, enquanto o servidor federal tem remuneração média de R$9,2 mil. A discrepância acompanha também a diferença salarial entre homens e mulheres. Em um comparativo de 2017, na escala Judiciária as mulheres recebiam salários 14% inferiores aos homens no mesmo cargo, enquanto no Legislativo a diferença foi de 7%.
Fonte: https://rhpravoce.com.br/redacao/os-desafios-da-gestao-de-pessoas-na-maquina-publica/
Publicado por: Tiago Merlone